Analisando se o narcisismo está a aumentar ou se estamos a usar demasiado este diagnóstico.
Pontos principais:
- O transtorno de personalidade narcisista é raro, mas traços narcisistas subclínicos são mais comuns.
- O termo “narcisismo” é frequentemente usado de forma exagerada, simplificando comportamentos e patologizando indevidamente as pessoas.
- O uso excessivo do rótulo de narcisismo prejudica as relações ao fechar portas para a compreensão e crescimento.
O teu ex é um narcisista. O pai dele é um narcisista. A amiga dela é uma narcisista. O chefe de todos é um narcisista. Até começamos a preocupar-nos com a possibilidade de sermos nós próprios narcisistas. E, no meio disso tudo, surge a dúvida: será que realmente todos à nossa volta têm transtorno de personalidade narcisista (TPN)?
Por que será que esse termo está em todo o lado? Poderá haver tantos narcisistas assim, especialmente quando as taxas de prevalência não estão a aumentar? Vamos dar uma olhada mais cuidadosa no que está por trás do uso tão frequente desta palavra.
O que é o Narcisismo, afinal?
Provavelmente já tens alguma ideia do que significa o termo “narcisismo”, dado o seu uso tão comum. O transtorno de personalidade narcisista (TPN) caracteriza-se por um senso exagerado de autovalorização, necessidade excessiva de admiração, falta de empatia pelos outros e uma tendência para explorar as pessoas para atingir os próprios objetivos, devido a um sentimento de direito e superioridade. Os narcisistas costumam aparentar uma confiança excessiva e atitudes condescendentes, mas, na verdade, têm egos frágeis e ficam rapidamente magoados (e quando isso acontece, tendem a atacar).
Para que alguém seja diagnosticado com TPN, deve apresentar pelo menos cinco dos oito critérios e demonstrar um padrão de relações disfuncionais que começa na juventude adulta. Além disso, esses comportamentos precisam causar dificuldades significativas na vida dessa pessoa, como afetar negativamente o seu sucesso profissional ou prejudicar as relações pessoais.
Quantos Narcisistas Existem em Portugal?
Embora seja difícil obter um número exato, as melhores estimativas indicam que entre 0 a 6,2% da população pode preencher os critérios para o diagnóstico de TPN. Considerando a população de Portugal, isso poderia significar entre 0 e 620.000 pessoas com TPN, uma fração relativamente pequena, mas ainda assim significativa. Esse número é grande o suficiente para que devamos estar informados, mas não há razão para afirmar que há tantos narcisistas como muitas pessoas afirmam.
No entanto, muitas pessoas apresentam traços narcisistas, como falta de empatia ou necessidade de admiração, sem que preencham os critérios para o transtorno clínico. Elas podem não precisar de um diagnóstico, mas ainda assim enfrentam dificuldades. Por exemplo, podem ter dificuldades em manter laços próximos com os outros ou sentir uma necessidade constante de chamar a atenção e obter elogios. Embora possam ser desafiadoras de se relacionar devido a esses traços subclínicos, isso não significa que tenham TPN.
Por que o Narcisismo Está Tão Visível?
O aumento no acesso a informações sobre saúde mental ajudou a educar as pessoas sobre diversos transtornos, incluindo o TPN, e quanto mais sabemos sobre eles, mais começamos a notar esses comportamentos. À medida que aprendemos mais, tendemos a rotular comportamentos antes considerados apenas irritantes como sinais de um transtorno de personalidade. Essa tendência para diagnosticar pode ser tentadora, pois termos clínicos fornecem uma forma de entender comportamentos difíceis ou pessoas complicadas. No entanto, por vezes saltamos rapidamente para uma explicação diagnóstica quando ela não é correta.
Praticamente qualquer comportamento pode ser interpretado através da ótica do narcisismo. Se alguém exige reconhecimento pelo seu trabalho, parece narcisista, pois demonstra necessidade de admiração. Se sentimos que o nosso parceiro não percebe o quanto estamos chateados, achamos que ele é narcisista por falta de empatia. Se os nossos pais exigem que fiquemos em casa nas férias, em vez de irmos de viagem, concluímos que são narcisistas e tentam controlar a nossa vida.
O problema é que todos nós, em algum momento, agimos de forma narcisista. É normal sentir que precisamos de admiração para aumentar a autoestima, desejar tratamento especial para nos sentirmos importantes, achar que somos superiores como uma forma de combater inseguranças, ou até mesmo sentir inveja do que os outros têm. O que importa é a consistência, a intensidade e o impacto desses comportamentos.
O Problema de Rotular Alguém como Narcisista
Embora seja compreensível querer encontrar explicações para comportamentos prejudiciais, e até justificar o afastamento de pessoas que apresentam traços de TPN, o uso excessivo do rótulo de “narcisista” causa mais mal do que bem. Isso deixa pouco espaço para que as pessoas sejam imperfeitas, para cometerem erros e para terem dias difíceis (ou semanas ou meses!). Sem esse espaço para falhar, as relações acabam prematuramente, quando poderiam crescer se houvesse mais espaço para a imperfeição.
Todos nós temos traços narcisistas em algum momento. Às vezes, é uma necessidade leve, mas persistente, de receber admiração; outras vezes, pode ser uma fase de narcisismo aumentado devido a circunstâncias difíceis da vida que nos tornam mais sensíveis e menos empáticos. Mas, ao rotular alguém de “narcisista” sem entender a complexidade dos seus comportamentos, criamos uma imagem distorcida, ignorando as razões por trás das suas ações ou os aspectos da sua personalidade.
Outro problema é que, uma vez rotulada a pessoa como narcisista, é difícil voltar atrás. Decidir que alguém é narcisista altera para sempre a forma como a vês. Cada palavra e ação será analisada através dessa ótica, tornando mais difícil reconsiderar o diagnóstico, mesmo que não seja verdadeiro. Isso pode criar um distanciamento, mesmo que não seja verbalizado, prejudicando a relação e impedindo qualquer oportunidade de mudança ou crescimento.
Lembra-te, as pessoas podem ter traços narcisistas sem ter TPN. Podemos permitir que as pessoas sejam frustrantemente imperfeitas (até mesmo com falhas evidentes) sem diagnosticá-las. Todos nós estamos a fazer o nosso melhor, mas às vezes falhamos em ser bons pais, irmãos, filhos, amigos, chefes, empregados ou parceiros. Vamos reservar o diagnóstico de TPN para a pequena percentagem da população que realmente preenche os critérios e tentar ver todos os outros de uma forma mais compreensiva e tolerante.